O sonho profissional
Rosenildo acorda cedo, os olhos pouco descansaram naquela noite. Ansioso por
iniciar uma nova vida profissional. Aguardava, porém, seu amigo Luciovaldo para
levá-lo serra acima. A vida de professor na escola estadual de Praia Grande já
não era seu objetivo, seus sonhos exigiam voos maiores que um aumento do “vale
coxinha” de apenas quatro reais dado naquela semana. O dia reservava a ele o
início de uma carreira promissora numa empresa de e-commerce na qual seria
gerente.
- Ainda bem que o Luciovaldo é pontual, se fosse só por mim, estaria perdendo
o horário no primeiro dia de trabalho. Pensava ele enquanto consultava o
relógio. – Seis horas! Estou muito atrasado! Concluiu enquanto corria para o
banheiro. Abriu a janela do banheiro para espiar se lá embaixo estava o carro do
amigo, lá estava ele. – O Luciovaldo tem a chave da porta, ele que entre e
espere até que eu termine o banho. A chave a que Rosenildo se referia, era
qualquer objeto que coubesse no espaço deixado pela maçaneta da porta, poderia
ser uma tesoura, uma chave de fendas ou a única maçaneta avulsa da casa usada
para também abrir e fechar a porta do banheiro.
Blam! O vento entrou com força pela janela que deveria estar sempre fechada,
e acaba trancando o Rosenildo no banheiro.
- Droga! Rosenildo fecha a janela do banheiro inutilmente, e A campainha
toca. – Pode entrar, estou no banho. Disse ele aguardando que o amigo entrasse.
Silêncio. Ele termina o banho, chama o amigo e nada. – Isso deve servir. Diz ele
ao encontrar uma tesoura que usava para aparar os pelos das orelhas e nariz,
enfia na fechadura e se vê livre daquele cubículo. – Cadê o Luci??? Pergunta-se
ao passo que corre para a cozinha pegar os óculos que deixou em meio às garrafas
de vinho tomadas na noite anterior. Corre à porta, observa pelo olho mágico e
nada vê. Procura pela maçaneta e a encontra em meio às caixas vazias de pizzas,
pega um pedaço da de quatro queijos, mastiga vorazmente enquanto abre a
porta.
É quando vê caído na soleira da porta seu amigo Luciovaldo. Ele mexe com o
amigo na intenção que ele pare com a brincadeira, pois ele estava atrasado para
o grande dia. Mas não obtém resposta. Preocupado ele olha em redor,
principalmente para a porta do apartamento da dona Penha, mulher intragável
sempre atenta à vida alheia e disposta a confusão. Ele não a vê, mas tem a
impressão de ter visto um vulto se mover pela fresta daquela porta.
- Ele não pode ficar aqui. Pensou enquanto arrastava seu amigo para dentro do
apartamento. Colocou-o deitado no sofá, percebeu que o corpo estava quente,
pensou em chamar o médico do 413, mas depois se lembrou que aquele era um
morador de temporadas, e que depois desse carnaval, só voltaria nas férias de
meio de ano. Concluiu que estavam, naquele andar, ele e a Dona Penha. Atento ao
amigo, percebeu que este não tinha pulso. – Está morto! Ora essa agora, justo
no primeiro dia do meu trabalho este cara dá para morrer.
O desespero tomou conta do Rosenildo, não pelo fato de perder o amigo, e sim
pelas consequências sobre seu futuro profissional. - Vou ligar para a polícia.
Disse e enquanto discava, ia desistindo da ideia. – Não, isso vai me causar mais
transtornos, ele fica aqui, vou ao trabalho e na volta resolvo isso. Pensou isso
enquanto desligava o telefone. Vasculhou o bolso do amigo e de lá tirou a chave
do carro, juntou a ela a tesoura de cortar pelos do nariz, sua pasta de
executivo e o guarda-chuva. Consultou o relógio, seis e meia, desceu as escadas,
não queria encontrr com ninguém e ter que de repente responder sobre o amigo que
subiu à pouco.
- Isso é provocação, já não bastava ter morrido em minha porta? Disse ele ao
ver que o carro estava com o motor ligado, chamando a atenção sabe-se lá de
quem, já que o condomínio estava às moscas. Mas a preocupação de ter que se
justificar sobre qualquer coisa a quem quer que seja estava longe de seus
planos. Seus planos eram outros, e nada poderia atrapalhar. Muito menos um
morto, mesmo sendo ele seu amigo. Mas Rosenildo esperava que no fim do dia tudo
fosse se resolver.
Dentro do carro tentou espantar a lembrança do ocorrido, lembrou-se então dos
anos que passou dentro daquela escola, a preencher diários, corrigir avaliações,
se submetendo ao baixo salário e às péssimas condições de trabalho, lembrou-se
dos impropérios ditos aqueles colegas de trabalho que pouco ousavam nas suas
aulas, mas que na hora de se dirigir à diretora ou ao coordenador, douravam a
pílula dizendo cativar seus alunos com aulas espetaculares. Agora seu destino
era subir, a princípio a serra do mar, e depois na vida profissional, esse dia
haveria de ser o divisor de águas na sua vida, chegará atrasado, é certo, porém
terá como justificativa o trânsito caótico da cidade. Deixava para trás, alem do
corpo do amigo, angustias e frustrações de uma vida voltada a algo que não se
identificava.
Foi seguindo o caminho até que o carro começou a perder velocidade, o motor
falhando, e os solavancos ao entrar no acostamento, cada vez mais intenso, até
que ele acordou.
Acordou com Luciovaldo avisando que estavam atrasados para a primeira
aula.
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